Era uma vez uma Carochinha muito
pretinha e muito luzidia que andava numa dobadoira a arrumar a cozinha. Qual
não foi o seu espanto quando achou cinco réis, muito novinhos e amarelinhos.
Carochinha, começou a pular de
contente. Depois, acabou de arrumar tudo muito bem arrumadinho, tirou o
avental, compôs o vestido preto e foi pôr-se à janela, perguntando a quem
passava:
- Quem quer casar com a Carochinha
que é airosa e formosinha?
Neste momento
passou por ali um porco do Alentejo, muito gordo e bem tratado, que grunhiu
duas vezes:
- Quero eu, quero eu.
- Que é que tu comes? –
perguntou a Carochinha que era muito lambareira.
- O que Deus dá, - respondeu o
porco, que realmente tinha muito boa boca.
- Não me serves, - retorquiu a
Carochinha, fazendo um amuo de enfado.
O porco pôs o focinho no chão, muito
envergonhado e aborrecido, e foi-se embora.
- Quem quer casar com a Carochinha,
que é airosa e formosinha?
- Quero eu, - respondeu o Gato das Botas das Sete Léguas, fazendo uma
grande reverência à Carochinha.
- Que é que tu comes?
- Como tudo o que Deus dá, tendo
certa preferência pelos carapaus pequeninos.
- Puf! Não me serves. Espero que
Deus me há-de dar um marido mais fino do que tu.
O Gato das Botas das Sete Léguas
espetou as orelhas, deu à cauda em sinal de despeito, e foi-se embora furioso.
Volta a Carochinha a perguntar:
- Quem quer casar com a Carochinha
que é airosa e formosinha?
- Quero eu, - respondeu no seu vozeirão forte, um boi que ia puxar à
nora.
- Que é que tu comes? –
perguntou a gulosa da Carochinha.
- Como palha, feno, ervas, enfim tudo o que Deus dá para nosso sustento.
- Hum! Não me serves! Quero marido
mais delicado do que tu.
O boi que era muito bonacheirão foi
ruminando com a palha e as ervas que comera, estas palavras, muito sensatas:
- Forte tola! Deus me livre de tal
mulherzinha!
- Quem quer casar com a Carochinha, que é airosa e formosinha?
– esganiçou-se a
perguntar a presumida da Carocha.
-
Quero eu, - respondeu um
ladino coelho, que ia a correr para um prado.
- Tu és muito bonito, - disse a
Carochinha, a olhar para o pêlo lustroso do coelho. – O que é que comes?
- Ah! minha linda Carocha! Como
ervas tenrinhas, troços de couves, cenouras…
A Carochinha fez uma careta de
aborrecimento e despediu o coelhinho com estas enfadadas palavras:
- Que porcaria de comida! O meu marido
há-de ser uma criatura de gostos mais finos.
O coelhinho que era muito garoto fez
uma careta à Carochinha e, pernas para que te quero, aí vai ele até ao prado,
onde saboreou uma rica erva que lá existia.
A Carocha, já muito
arreliada, tornou a perguntar, esganiçando-se cada vez mais:
- Quero eu, - disse de além um ratinho de olhitos
pretos e vivos, e de orelhas espetadas.
- Que é que tu comes?
- Ora o que há-de ser? Tudo o que é bom
e que está nas despensas dos ricos: bom presunto, belo queijo, chouriços,
paios, fiambre, toucinho entremeado, carne assada, muito tenrinha…
- Que rico marido eu encontrei,
- respondeu radiante a nossa lambareira Carochinha.
Combinado o
casamento, fez-se uma festa de truz. Houve um jantar tão cheio de petiscos e
iguarias, que toda a bicharada dele falou durante muito tempo.
No Domingo,
Carochinha vestiu o seu vestido de cetim preto, pôs um chapéuzinho impertinente
com duas aigretes pretas e, toda vaidosa, foi à missa com o marido.
No meio do caminho, Carochinha, reparou
que não tinha trazido as luvas.
Tolinha como era, ficou muito arreliada
com o caso. «O que iriam pensar dela os bichos da vizinhança?» Uma
senhora tão ilustre sem luvas!
O João Ratão – era este o nome do
marido da Carochinha – logo, todo amável, voltou atrás a buscá-las.
Abriu a porta da
sua casinha, e o seu paladar foi tentado, pelo rico cheirinho que se espalhava
pela casa toda. Um cheirinho a toucinho que era mesmo um regalo.
Com a boca cheia de água, o nosso amigo
aí vai, já esquecido das luvas, até à panela que fervia em lume brando.
João Ratão, destapou a panela e,
gulosamente, meteu a mão para tirar um pedacinho do tentador toucinho mas, com
tanta infelicidade o fez, que escorregou e caiu dentro da panela.
Carochinha esperou, esperou
impacientemente, bateu o seu pézito calçado com botinha de verniz preto e,
furiosa, foi a casa pronta a zangar-se com o João Ratão por a ter feito esperar
tanto tempo.
Chegou lá e o
coração deu-lhe um baque. A panela destapada, fazia com que se espalhasse pelo
ar um cheiro a toucinho e a rato cozido.
Ah! o pobre João Ratão fora vítima da
sua gulodice! Má hora aquela em que quisera casar com um guloso.
Talvez tivesse sido mais feliz se
houvesse casado com um dos primeiros pretendentes: o porco, o gato, o boi…
Todos tão simples, e tão frugais que se contentavam com qualquer comida.
Carochinha
sentou-se num banquinho da cozinha, lavada em lágrimas. O banco,
apesar de ser de pau, lá se comoveu com a sorte da Carochinha, e perguntou-lhe
por que estava triste.
- Ora por que há-se ser, meu amigo?
É que morreu o meu João Ratão.
- Então eu para compartilhar do teu
desgosto, vou-me partir.
E bumba, o banco partiu-se e atirou com
a Carochinha de pernas para o ar. Lá ficou a pobrezita deitada de costas a
lamentar aquela triste ideia do banco.
«Partir-se para quê? Longe de remediar
o seu mal, ainda por cima a deixava de costas, numa posição tão incómoda e de
que custava tanto libertar-se.»
Após muitos esforços, conseguiu
colocar-se na sua posição habitual e foi esconder-se atrás duma porta, para
chorar à vontade a sua dor, sem ninguém a incomodar.
A porta, porém,
apercebeu-se das lágrimas da Carochinha, e perguntou-lhe o que tinha.
- Valha-me
Deus! Morreu o meu João Ratão.
- Pobre
de ti! Quero acompanhar-te na tua mágoa. Vou-me pôr a abrir e a fechar; os meus
gonzos chiarão e será esse o meu choro.
Mal dissera aquilo, a porta pôs-se a
abrir e a fechar , e a Carochinha, se não desse um pulo, morria esmigalhada.
- Esta
só pelo mafarrico! Para que quererão os outros partilhar, aparentemente, uma
dor que não é sua?
Carochinha saiu de
casa, pensando que ao ar livre estaria melhor. Foi sentar-se à sombra duma
nogueira e começou a soluçar baixinho:
- Morreu o meu João Ratão!
A árvore que isto ouviu, pôs-se logo a
lamentar a sorte da pobre Carocha e, querendo manifestar-lhe a sua pena,
começou a deixar cair sobre ela todas as nozes que tinha.
Algumas
magoaram bastante a pobrezita que, foi a correr pelos campos fora, sem ânimo
para chorar a morte do seu João Ratão, não fossem outras coisas condoer-se da
sua desdita e molestá-la mais ainda.
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